Sobre o tamanho e o feitio dos livros

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“Do destino dos livros dependia muitas vezes o destino das pessoas, dos povos e mesmo dos países. Os livros não serviam só para contar histórias e para ensinar. Participavam nas guerras e nas revoluções, ajudavam a destronar reis; os livros combatiam tanto no campo dos vencedores como no campo dos vencidos. E, às vezes, à primeira vista se vê a que partido pertencia o livro.

Vi, numa biblioteca académica, livros franceses publicados antes da revolução de 1789. Um deles é um grande volume orgulhoso, com fechos de luxo e lindas gravuras. Era um livro de monárquicos, um livro do tempo dos reis soberbos.


Outros livros eram tão pequenos que se podiam meter facilmente na algibeira, escondê-los na mão.
Eram os livros dos revolucionários. Faziam-nos pequenos para poderem atravessar as fronteiras e propagá-los em tempos de revolta.

Assim, o formato dum livro não é devido ao puro acaso! E porque a vida dos livros foi sempre inseparável da dos homens,
os livros tomam a medida que convém a estes.”

M. Iline
In
O Homem e O Livro, Biblioteca Cosmos nº 1 (org. Bento de Jesus Caraça), Lisboa, Edições Cosmos, 1941, pp. 120 e 121.

Com o
O Homem e O Livro era inaugurada em 1941 a Biblioteca Cosmos, um projecto editorial dirigido por Bento de Jesus Caraça que pretendia fazer chegar o saber das elites do Portugal dos anos 40 ao maior número possível de pessoas. As ciências e a técnica, as artes e as letras, a filosofia e outras áreas do conhecimento condensavam-se e davam-se a ler, em volumes pequenos e baratos, a uma sociedade limitada à escola primária.


"O direito de ler em voz alta"

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“Eu pergunto-lhe:
— Quando eras pequena liam-te histórias em voz alta?
Ela responde:
— Nunca. O meu pai andava sempre a viajar e a minha mãe estava sempre muito ocupada.
Eu pergunto:
— Então de onde vem esse teu gosto pela leitura em voz alta?
Ela responde:
— Da escola.
Feliz por alguém reconhecer algum mérito à escola, exclamo, satisfeito:
— Estás a ver?
Ela diz-me:
— De modo nenhum. Na escola proibiam-nos que lêssemos em voz alta. O credo da época era a leitura silenciosa. Directamente da vista ao cérebro. Transcrição instantânea. Rapidez, eficácia. E de dez em dez linhas, um teste de compreensão. Desde o começo, era a religião da análise e do comentário. Muitos miúdos ficavam aterrorizados, e ainda estávamos no princípio! Se queres saber, todas as minhas respostas eram correctas, mas mal chegava a casa, relia tudo em voz alta.
— Para quê?
— Para me maravilhar. As palavras pronunciadas começavam a ter existência fora de mim, tinham autêntica vida. Além disso, para mim era um acto de amor. Era o próprio amor. Sempre pensei que o amor ao livro passa pelo amor tout court. Deitava as minhas bonecas na minha cama, no meu lugar, e lia para elas. Cheguei a adormecer no tapete.
(…)”

Daniel Pennac
em Como um Romance (pp.183), Lisboa, Edições Asa, 2002.


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