A apresentação do audiolivro 35 contos dos irmãos Grimm em Lisboa teve casa cheia e histórias cheias com António Fontinha e Maria Morais. Aqui ficam duas fotografias e o link da reportagem da jornalista Sara Gomes do magazine cultural AGORA, da RTP2.



Quem também lá esteve foi o jornalista da TSF Fernando Alves, que pouco tempo depois tratou de juntar o veterano António Fontinha à galeria de Portugueses Excelentíssimos.


"de nada" ganha Prémio Diógenes 2012

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de nada, o mais recente livro de originais de Alberto Pimenta, edição da Boca com leitura do autor, foi distinguido com o Prémio Nacional de Poesia Diógenes 2012
Luís Miguel Queirós, Rosa Maria Martelo e Rui Caeiro foram o júri unânime desta segunda edição do prémio atribuído pela revista literária Cão Celeste, que em 2011 distinguiu Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea de António Barahona.
Na sessão de entrega do prémio (2000€ e uma lanterna iluminada), no dia 15 de Novembro, na livraria Paralalelo W, Alberto Pimenta premiou-nos com a leitura de um texto escrito para a ocasião e que segue abaixo:

Daqui a uma centena de anos (pode ser mais, pode ser menos), o português deverá ser uma língua meia morta, e os pesquisadores das curiosidades do passado mais remoto revelarão então que nesta bárbara época em que os nossos semelhantes não eram ainda artistas, mas viviam até em cativeiro, houve um homem chamado Pimenta que, aos domingos, a troco de qualquer salário ou benesse, se instalava, para estudo e atracção dos visitantes, numa jaula de pan troglodytes que então existia na portuária cidade de Lisboa. Menos de um mês depois de o evento se ter realizado, jornais portugueses e franceses atribuíam-lhe várias durações, como um week-end, e davam-lhe intenções muito diversas. Assim se vai fazendo a história, tanto esta pequena, como a outra, a grande.
Diógenes não vivia dentro dum barril ou barrica (meu Deus, como é que um homem cabe dentro de vasilhas desse tamanho?), nem era também dentro dum tonel (meu Deus, como é que um homem anda constantemente com um tonel à cabeça dum lado para outro, como Diógenes costumava?). Essas andanças de Diógenes foram sonegadas, ou pelo menos silenciadas, desde que a realidade se foi esquecendo, e foi substituída por um mito grotesco, mas inquestionável, como todos os mitos instalados. Criou-se então a imagem absurda dum homem metido toda a vida dentro dum barril. Ora o que sucede é que na Antiguidade se usavam, para guardar o vinho, vasilhas com forma muito semelhante às modernas, só que eram de barro, portanto muito mais leves: na Grécia chamavam-se pithos, e dolium em Roma. Madeira, para esse efeito, era usada pêlos celtas; a primeira menção a essas vasilhas de madeira usadas na Gália é de Plínio, já no primeiro século desta era. Assim, entende-se como é que Diógenes sem tanta dificuldade (só com um bom equilíbrio de ancas, como as antigas varinas,) se deslocava constantemente de lugar, levando o seu pithos à cabeça.
Levava-o para todo o lado, como hoje se leva o carro (mais um caso da actual inversão dos valores, porque o carro é que leva), e naturalmente pousava-o quando lhe apetecia e metia-se dentro. O pithos servia-lhe para fazer a sesta, para passar a noite e, simplesmente, para não fazer nada de especial, digo eu, porque o que ele então costumava fazer parece-me coisa muito natural. Diógenes sabia que no caso de se instalar num lugar certo da cidade, não tardavam a aparecer, às horas dos encontros sociais, patrões e escravos impertinentes, e corria até mais riscos de ser apanhado e levado para ser vendido como escravo (o que chegou a acontecer uma vez). Andava com o pithos à cabeça, tal como os vagabundos (a quem a ordem pública chama sem-abrigo, porque assim parece um estado temporário) levam na mão (dantes era na ponta dum pau) sacos de plástico (dantes eram de pano) cheios não se sabe bem de quê nem para quê (só se percebe à noite, quando se deitam num canto recolhido da rua).
Mas Diógenes não era um sem-abrigo. Andava muitas vezes de lugar em lugar, e perorava. Para além disso, os ditos sem-abrigo fazem questão de se distinguir dos mendigos. São duas classes de gente: mas Diógenes acumulava, andava às portas a pedir comida, e era filósofo, dizia-se, coisa que nessa época dava muito charme; até tinha frequentado a reaberta escola cínica de Antístenes que, às tantas, tinha resolvido fechar a porta, para se fazer discípulo de Sócrates, pronunciando o famoso dito: "Ide procurar o vosso mestre, eu encontrei o meu". "E afinal que é que a tua filosofia te ensinou?", perguntou-lhe um discípulo: "A viver comigo", foi a resposta. Mais tarde Diógenes, em vez dum mestre, arranjou um pithos - digamos uma pipa - para não ficar com este trabalenguas todo o tempo.
Pode haver opiniões diversas a respeito desta decisão (e houve, e há), mas gente assim houve também sempre.
No século XIII, os monges zen, segundo Mestre Do-Djan, praticavam uma renúncia à vida social que se aparentava: "A vida monástica pratica-se na pobreza, mendigando a comida e deslocando-se a pé"; em vez da pipa, andavam com a malga para pedir o arroz. Importante era mesmo não trabalhar. Diz ainda Do-Djan: "Chama-se monge de Buda o discípulo que enverga a túnica de farrapos, e que, tal como as nuvens, não elege domicílio em nenhum lugar e, assim como a água, avança no seu caminho sem se deter". Perfeito para Diógenes. Há também por exemplo os cristãos estilitas da Síria, no século V, que viviam isolados no alto duma coluna (daí o nome: do gr. style, coluna). Simeão, que passou 40 anos sem sair uma única vez de cima da sua, tem o record e, talvez por isso, foi canonizado: na Folhinha calhou-lhe o dia 24 de Maio, e não sei se é patrono e protector dalguma classe de gente, por exemplo os equilibristas. Acontece é que no alto da coluna (uns 15 metros) havia um estrado para se estender, com parapeito talvez para espraiar os olhos pelo mundo. A coluna tinha uma escadinha por onde lhe era levado o comer, e trazidas de volta - penso eu -as sobras da digestão. Bem, com santos tudo é possível, mas não é crível que defecasse como os pombos, em jeito de bênção aos peregrinos. Como quer que seja, da coluna não desceu em 40 anos, e não se conhece caso de obstipação tão renitente, não foi isso. Tudo isto se passava a norte de Alepo, perto da fronteira com a Turquia. É ainda hoje lugar de peregrinações, tem um santuário e tudo, se a guerra não pôs o memorial já em pantanas. O pretexto destes santos homens era estar mais perto de Deus. Para Diógenes seria, como para Antístenes, estar mais perto de si. Se fosse no século XIX e em grande parte do XX, depois do grande achado da psique, tinham ido fazer a sesta a um asilo psiquiátrico; hoje, com o avanço industrial e o retrocesso dos lugares de acolhimento de maluquinhos, estavam de certeza a arrumar carros - de qualquer modo seria complicado arranjar actualmente espaço para a coluna, ou para a pipa, e para se irem mostrar no circo tinham de saber fazer mais qualquer coisinha. E há muitos, muitos mais casos e variantes desta tara, ao longo da história.
Diógenes com o seu pithos é um caso original, e ele não precisava de muitos pretextos, bastava-lhe ser filósofo cínico, movimento então reconhecido e com seguidores e apreciadores: nessa época, os movimentos filosóficos eram como hoje os partidos políticos, só que não eram subsidiados. Diógenes lá se ia subsidiando a si mesmo, ora uns discípulos de passagem aqui, mais uma dádiva ali, passou a maior parte dos seus 96 anos de vida a alegrar os lugares por onde passava com o seu pithos. Lá vem o Diógenes, dizia-se. Pura exibição, portanto? Sócrates tinha dito uma vez a Antístenes, era este seu discípulo: "através desses buracos esfarrapados da tua indumentária, o que eu vislumbro é só vaidade". Coisas de Sócrates.
Diógenes não fazia doutrina, não tinha essa vaidade; também não fizeram outros por ele, deixaram episódios soltos (como no caso de Bocage) não totalmente fiáveis a não ser quando se repetem em todos os tratadistas (Diógenes Laércio, muito próximo no tempo, era um confuso, como os evangelistas; Plutarco está já muito distante, coisa de 500 anos, e Cícero moraliza). Boa parte das observações limita-se ao "diz-se, "consta que", ou "parece"... Dizia-se então por exemplo que ele usava e andava com a pipa à cabeça, bem como com os trajes cínicos (porque os cínicos usavam farda), por pura ostentação, não de luxo, mas de desnecessidade absoluta. Aí está um maná para os actuais governantes da Europa e respectivos banqueiros centrais e laterais, quando souberem isto (sim, porque não sabem, questões de história da humanidade e de filosofia nem sabem de que é que isso trata), vão com toda a certeza usar Diógenes como exemplo de privação bem sucedida, de que ainda hoje se fala; talvez dêem o nome de Diógenes a escolas, programas, centros de investigação e departamentos de segurança, e ainda a fundações para a saúde.

Pelo que fica dito, percebe-se que eu sou bastante diferente de Diógenes e dos outros citados, os zen e os estilitas. É certo que não tenho pipa com rodas para me deslocar dentro dela, nem visão que não seja a dos meus olhos (com uma mãozinha dos óculos), quer dizer, nem telé nem interne, mas tenho um belo cartão de cidadão que reluz, novinho em folha; eu estava com receio de que me reduzissem drasticamente o prazo de validade, mas vá lá, aquilo parece que é de chapa, excepto no caso dos moribundos. Custa 15 eurinhos, mas dá-me direito a existir nestas paragens, pagando a ocupação, é claro. Tudo coisas que me diferenciam de Diógenes. Diógenes não pagava para andar por onde lhe apetecia. Mas há mais: Diógenes (afirmam os tratadistas, com delicadeza própria do assunto) - parece que ele dava um traque quando lhe vinham falar do que não lhe interessava, ou não lhe convinha, por exemplo quando lhe vinham perguntar qual dos 5 rios Asopo conhecidos era o verdadeiro pai da ninfa Sinope (que deu o nome à cidade onde Diógenes nasceu, - um traque com a dieta que fazia não era difícil: tinha a barriga cheia de ar). Ora sabe-se (não se consta), sabe-se que Diógenes foi expulso de Sinope por falsificar dinheiro, por moedeiro falso, e o dracma usado na altura tinha uma efígie da ninfa Sinope. Era das moedas mais belas da época: mais só de Alexandre. Ah, grande Diógenes, falsificar dinheiro é esbofetear os que detêm o exclusivo de o cunhar, coisa de que eu infelizmente não me posso orgulhar, hoje é incomparavelmente mais difícil.
Diógenes não andava nu, mas às vezes, como todos os cínicos, despia-se em público, punha-se ao sol a catar os piolhos e a exibir as crostas de sujeira, tudo coisas que eu não faço. Não faço, mas a vida de Diógenes, ao contrário da minha, é um exemplo a considerar também pelas autoridades da saúde: 96 aninhos quase todos passados naquela vida, sem doenças, pelo menos sem recorrer a facultativos, que já então eram caros e também não eram de fiar, sem ginástica nem ginásios, só com dieta mole, ou seja, papas de aveia, melhoradas com alho uma ou outra vez, nos dias de festa, sem tomar banho, cheio de piolhos, sem cometer excessos (excepto talvez um), é um modelo para a cidadania actual. Querem mais e melhor? Como é que ele não havia de ter vaidade na sua condição de vida e no seu cantinho de aconchego (que era o pithos): a soberba que lhe vinha daí é bem conhecida do episódio mais vezes transcrito da sua história: o episódio com Alexandre Magno. Alexandre também devia ter um coração de ouro: foi oferecer, apanhou uma tampa monumental; qualquer outro teria dado um pontapé na vasilha, e lá ia Diógenes e tudo de escantilhão e em cacos. Alexandre tinha classe: virou-se para o séquito e disse: "se eu não fosse Alexandre, gostava de ser Diógenes". Episódios destes aumentavam em Diógenes o culto envaidecido do seu cantinho de aconchego, da pobreza extrema, de se marimbar para o mundo, como os estilitas ou os monges zen, de passar sem nada, embora a comida não seja exactamente "nada". Um dos seus happenings, o mais conhecido, em que em pleno dia, com uma lanterna acesa, procurava um homem (não fica claro se é "sério" ou "a sério") prova várias coisas, a saber: Diógenes tinha uma lanterna, pelo menos isso tinha, além da pipa e da roupa cínica (sim, não se vê Diógenes a pedir emprestado); sabia que por ali não havia homens (sérios ou a sério), estava portanto informado do que se passava em Atenas, talvez ainda melhor que se fosse hoje, porque sabia das coisas sem serem filtradas; tinha talento e inclinação para o happening; e, por fim, considerava-se a si mesmo o único homem (sério ou a sério) e procurava, é natural, um semelhante. Aí sim: eu fiz o mesmo quando me fui meter na jaula de macacos.
Modesto (explicam alguns que falso) disse aos seguidores, entre os quais, ao contrário do séquito de Cristo, não se contavam groupies (o seu discípulo Crates tinha-as; até se juntou com Hipárquia em cerimónia nupcial com rito cínico e, rezam os textos, os dois satisfaziam em público (cito) "os seus desejos carnais"); portanto (retomando), disse aos seus seguidores: "o funeral é terra para cima, vala comum, nada de procissões". Levantou a lebre, e claro que em Sinope, lá nos confins da Anatólia, sua terra natal, foram-lhe erguidas várias estátuas, e em Corinto, onde morreu, fizeram-lhe exéquias solenes e pespegaram sobre o túmulo uma coluna que, em cima, tinha um cão de mármore. É preciso falta de gosto, sei lá... Mas podia ser pior: estou a ver o cão com um casaquinho de tricot.
Sei é que eu, cavalheiro do século XX, não me pareço muito com este cabeludo que usava um pithos não só para repousar e meditar, porque ele tinha as paredes e o fundo cobertos de uma camada de esperma seco que dava para calafetar um navio. Isto é o que consta: Diógenes era uma masturbador compulsivo; uma espécie de socialista radical, porque só na masturbação se reúne na mesma mão capital e trabalho. Eu tenho casa, tenho cama, tenho quarto de banho e claro que não encho o chão de esperma (nem na vida inteira conseguiria), não trato mal quem me oferece o que está no seu poder dar, sou meigo e obrigado, ou, como escrevia o Cavaleiro de Oliveira a uma senhora: dizem que a minha língua é cortante, mas isso é só para indignos e insolentes, porque fora disso, experimentai à vossa vontade, vereis que ela é muito suave e agradável! Logo: este prémio não me é dado pelo mérito da afinidade. De facto, hoje é difícil conseguir encontrar afinidades com Diógenes. Até os sem-abrigo preferem a garrafinha de cerveja.
Quer dizer que não há novos Diógenes nesta modernidade?
Bom, diz-se que há sempre retorno de tudo, mas não é exactamente assim: um dos grandes equívocos é considerar que as épocas se sucedem, mas não: elas entrelaçam-se umas nas outras (não sou o primeiro a dizê-lo); primeiro infiltram-se, depois explodem quando estão maduras, e são de novo infiltradas. As coisas adaptam-se, copiam-se, não retornam. Claro que há quem esteja ainda convencido de que está sucedendo a Sócrates, ou, mais raramente, a Diógenes. Na realidade visita-os uma vez por outra na vida, quando dá jeito citá-los, ou no dia da licenciatura, e até leva flores, que raramente são dentes-de-leão, porque esses crescem por ali, onde foram as campas, não é preciso levá-los. A Terra, na sua revolução, faz com que o sol apareça sempre no mesmo ponto, o chamado ponto vernal, no dia 21 de Março, mais meia dúzia de horas, menos meia dúzia de horas; mas todos os anos o restante do céu já está diferente. Uma revolução, coisas diferentes, coisas iguais. Os anos e os factos encavalitam-se também, mais do que se sucedem. Veja-se por exemplo o 25 de Abril e o 25 de Novembro: não se sucederam, encavalitaram-se. E prescindo de exemplificar com obras de arte.
Diógenes da modernidade? Olhem, o pithos de Rimbaud foi a Abissínia, que ele trazia não em cima, mas dentro da cabeça. Buñuel, n'O Anjo Exterminador", embarrilou ele, meteu no barril a sociedade chic que vinha de assistir a um concerto clássico, ou a uma ópera, essas sublimações do totalitarismo do real para a classe alfa; para a classe média, o equivalente é Walt Disney, assim como a telenovela o é para a populaça. Em imensos casos, a classe alfa acumula (é aliás a sua especialidade), gosta de ver Walt Disney ou a telenovela às escondidas. Eu não frequento, é certo, nenhuma das 3 coisas, nem alfa nem as outras, porque todas elas me estomagam (sobre a Aida de Verdi já disse o que tinha a dizer em de nada, mas isso não chega para me dar mérito de afinidade com Diógenes. Então a já tão repetida jaula de macacos não terá sido um pithos verdadeiro? Credo, durou um dia, ou melhor, uma tarde, ou mais exactamente, 2 horas, uma caganita de tempo ante os 96 anos que temos ante nós.
Quer dizer então que dar-me este prémio é absurdo? Alto, Cioran é lapidar: "Dizer que o universo é absurdo é entrar no jogo daqueles que dizem que ele tem sentido". Se calhar nos prémios, como no universo, não é o sentido que tem de se procurar. É outra coisa.
Diógenes uma vez foi vendido como escravo, como eu no começo disse. Foi raptado por piratas e vendido a alguém que, pêlos vistos, ou o apreciava já, ou passou a apreciá-lo, pois Diógenes não mostrou a soberba que tinha tido com Alexandre, não se armou em Spartacus avant la lettre, bem longe disso! Falou muito cordato, com elegância e com requinte; o patrão deve ter apreciado e rendeu-se: deu-lhe uma supervisão na quinta e fê-lo preceptor dos filhos. E Diógenes adaptou-se perfeitamente ao sistema. Acharia, quem sabe, que a condição de escravo era um bom modo de viver o ideal cínico. Não partilho, e não é caso para dizer que o sistema engole tudo, e devora até os próprios filhos. É o filho pródigo que volta. Para gosto ou desgosto dele, não se explica porquê, não tardou a ser liberto. Eu, ao fim de quase 50 anos, também me encontrei liberto. Já lá vão uns 6 anos. Em vez da pipa (que o vinho hoje vem em caixas de cartão), recolhi à minha mansarda na Mouraria (mas que fado, e trocando-lhe as vogais ainda melhor!), e fiquei a ver e a ouvir, com atenção mais concentrada do que antes. As coisas à minha volta caem: dentro de mim também. E ainda falta tanto para os 96 anos! Se já agora isto se tornou uma chatice, que fará então! E para quê? Nem sequer tenho seguidores a quem possa encarregar uma cremação vistosa, por exemplo com fogos de Bengala. Claro que o prémio é capaz, se não de chegar (é que não chega mesmo), pelo menos de se aproximar do valor duma festa dessas. Não sei se me é dado por isso.
Mas se não é, e o mais provável é que não seja, só pode ser graça.
Refiro-me naturalmente à graça teológica (grafia actualis ou concursus divinus) que os dogmáticos explicam que não tem causa nem razão, porque para Deus não há causas nem razões. Ele é a causa e razão. É Ele em pessoa que decide tudo, os prémios também. Então, foi assim que este prémio me foi atribuído? É um facto que é assim com quase todos os prémios, literários ou não. Digo "quase", porque há casos de interferência diabólica, especialmente complicados quando é grande o número de entidades que têm de ser inspiradas: aqui foram 3, mas podem ser 5, outras vezes são 9, como as musas, ou até mais, em prémios especialmente gordos.
A respeito destes, penso no prémio Nobel, especialmente os de Física e Química (atribuídos a gente que se esforça por descobrir como funciona o universo e, para isso, faz o que pode para o imitar ou clonar), cito um passo de um poema de Hans Magnus Enzensbefger:
Intitula-se O fácil, que é difícil de inventar, e fecha (nesta minha tradução):
(...) o dente-de-leão
como ele consegue
aquela elegância airosa e inexcedível!
Nunca na vossa vida,
queridos prémios Nobel,
confessai, nunca teríeis inventado uma coisa assim.
E agora ... agora estou a antever os blogues: "Pimenta afinal também recebe prémios, não se pode acreditar mesmo em ninguém!" Ou o contrário, que não sei bem o que é. Talvez: " Mas o raio da forma como ele agradeceu! Que é que esperavam?"
César Rendueles, no seu recente livro "Sociofobia" diz que a Internet é um zoo (isto soa-me!), um zoo em ruínas onde se conservam, já muito gastos, os velhos problemas que nos afligem, que nós achamos melhor não encarar de frente... é como os psicofármacos: ninguém confunde o bem-estar que dá o Prozac com uma vida plena, mas ele ajuda a ir aguentando, seja qual for o dano que produz.
Portanto, digo eu agora (com Vergílio, se a memória me não falha), quotquot nautae in gurgite vasto, façam o gosto ao dedo, que outra coisa é utopia.
E obrigado, entidades que com concurso divino (ou diabólico talvez), tomaram esta decisão! Esse est percipi, disse o bispo Berkeley. Ser é ser apercebido. Podia também ter sido dito pelo diabo do Auto da Alma, ou pelo próprio Diógenes: era já lema dos cínicos. Daí o pithos à cabeça, ou pousado junto ao campo coberto de dentes-de-leão. Tudo certo.

Alberto Pimenta, Novembro de 2013



No dia 16 de Novembro, data de nascimento de José Saramago, a Fundação Saramago convida ao encontro com a cidade e os livros do escritor que vivia desassossegado e escrevia para desassossegar.

O itinerário da manhã percorre os lugares de O Ano da Morte de Ricardo Reis, num mapa feito em colaboração com o projecto Atlas das Paisagens Literárias, do IELT, e disponível aqui.
 
A Boca juntou-se ao passeio e gravou Fernando Alves lendo textos de José Saramago, Eça de Queiroz, Bernardo Soares e Sophia de Mello Breyner sobre música de António Pinho Vargas, textos que soarão hoje e amanhã nas estações do Metropolitano de Lisboa e que estão disponíveis para escuta aqui.

A festa continua tarde fora na Fundação: às 16h30 haverá contos com Rodolfo Castro, naquela que é a 2.ª sessão da "Casa dos Bicos, Casa de Contos", parceria da Fundação Saramago com a Boca, e às 18h Miguel Real apresenta Clarabóia (numa edição que reproduz o primeiro original dactilografado) e Jorge Silva apresenta a nova edição de A Maior Flor do Mundo (ilustrações de André Letria).

A fechar veremos o documentário Ulisses, que poderemos depois debater com Rui Tavares e outros convidados.



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