A Conferência no Instituto Alemão

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No passado dia 29, no Goethe-Institut, tivemos a oportunidade de ouvir duas representantes de duas grandes editoras de audiolivros alemãs. Heike Völker-Sieber, directora de relações públicas da Hörverlag, falou-nos de como em 14 anos de existência esta casa se desenvolveu, tornando-se líder de mercado na Alemanha. Fundada em 1993, a Der Hörverlag publicou a sua primeira leva de audiolivros em Maio de 1995. Actualmente, tem cerca de 800 títulos disponíveis e, para além de editar em alemão, já publicou algumas dezenas de títulos noutras línguas (maioritariamente em inglês). A Headroom Sound Production, representada na conferência por Theresia Singer, também nasceu nos anos 90 (em 1997), na década em que o audiolivro conquista público na Alemanha e surge quase um movimento de literatura falada. Actualmente esta casa tem cerca de 40 títulos disponíveis, a maior parte deles de aventuras para toda a família. Ambas as editoras tiveram no início de lidar com os preconceitos habituais em relação ao audiolivro: com a ideia de que era um formato menor (o que explicava a ausência de crítica); que se dirigia apenas a cegos e idosos com visão reduzida; ou ainda que seria uma ameaça à leitura tradicional. É preciso lembrar que alguns dos melhores textos da Literatura Universal foram escritos para serem ditos em voz alta no palco. Que fechar os olhos para ler pode ser uma delícia e que quem gosta de ler gosta de ler.
Ali coube-nos falar de audiolivros em Portugal.


Pedido de divulgação

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Casting de vozes caboverdianas

dia 30 de Novembro (sexta-feira), entre as 18h e as 21h

ponto de encontro às 17h45, à porta do Teatro A Barraca.

Procuramos homens e mulheres de várias idades – novos e velhos –, de preferência conhecendo os sotaques das ilhas de São Nicolau e São Vicente, para fazer a leitura gravada (em audiolivro) do romance Chiquinho, de Baltasar Lopes.

A escolha dos intérpretes e direcção artística deste audiolivro estará a cargo da actriz Maria do Céu Guerra.

Pede-se confirmação de presença através do e-mail oriana.alves@boca.pt.


Morada:

Largo de Santos, N.º 2

Transportes:

Metro – Cais do Sodré

CP – Estação de Santos

Carris – 6, 727, 60, 104, E15, E28, E25

Para confirmação de presença e esclarecimentos por favor contactar:

Oriana Alves - e-mail: oriana.alves@boca.pt / Tlm.: 917876240




Conferência sobre audiolivros

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No dia 29 de Novembro participaremos numa conferência sobre audiolivros no Goethe-Institut. Também estarão presentes as representantes de duas das maiores editoras de audiolivros alemãs: Heike Völker-Sieber, directora de Relações Públicas da Hörverlag de Munique, e Theresia Singer, directora da Headroom Sound Production de Colónia e membro da secção de Editoras de Audiolivros na Associação das Editoras Alemãs.

Esta é uma boa oportunidade para trocarmos ideias com editores de um país onde o livro falado tem já uma longa história. Ainda tinha o formato de disco quando, na Alemanha dos anos 40, desenvolveu-se uma indústria destinada aos soldados que haviam ficado cegos na guerra. Mais recentemente, nos anos 90, o audiolivro popularizou-se de tal forma que surgiram festivais especializados e espaços, como bares, onde se vai de propósito ouvir em voz alta livros de todos os géneros literários. Segundo um estudo de mercado recente, numa amostra de 500 alemães inquiridos, um em cada três já ouviu pelo menos uma vez um audiolivro.

Este ano o Goethe-Institut está empenhado em fomentar por cá o hábito da literatura falada. Esta conferência inaugura um projecto dedicado à arte acústica que culminará em 2008 com um “verão áudio” no jardim do Instituto Alemão.

Programa:
Data: 29.11.2007 

Hora: 18h30 

Local: Auditório do Goethe-Institut Portugal em Lisboa
18h30 – Recepção e boas-vindas – Ronald Grätz (director do Goethe-Institut Portugal)
18h35 – Introdução – João Morales (Moderador, editor d’ Os Meus livros)
18h45 – Hörverlag, Munique
– Heike Völker-Sieber (directora de relações públicas)
19h15 – Headroom Sound Production, Colónia –
Theresia Singer (gerente)
19h45 – Boca, Lisboa – Oriana Alves (gerente)
20h15 – Debate com o público
21h00 – Encerramento


Audiolivro da Boca na Windows Vista Revista Oficial

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Este mês, quem comprar a Windows Vista Revista Oficial encontrará no DVD de oferta um audiolivro da Boca: Tabacaria, de Álvaro de Campos. Esta parceria surgiu a propósito do tema desta edição de Outubro (já nas bancas), o regresso às aulas; esperamos que o nosso livro falado inspire didacticamente os professores de português, e que o engenheiro naval se multiplique furiosa, triunfante e tecnologicamente nos leitores de MP3 dos alunos portugueses.


Debate sobre audiolivros

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Amanhã (5 de Junho), na Livraria Barata, a BOCA participará num debate sobre audiolivros. O evento é organizado pela revista Os Meus Livros e contará com a presença de editores, autores e actores ligados a este novo ramo editorial. Convidamos os nossos leitores a abrir também a boca sobre o assunto. O encontro está marcado para as 19h00, na Livraria Barata da Av. de Roma, nº 11 A.


Dia Mundial da Criança

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A BOCA junta-se à Fermento para celebrar o Dia Mundial da Criança e convida miúdinhos e miudões a vir conhecer A Alegria de Gostar, os poemas de amor para crianças de todas as idades, de Jairo Aníbal Niño. No dia 2 de Junho, Sábado, na R. do Século, nº13, a partir das 15h00, com a presença de Fernando Alves, Mariana Abrunheiro e Guilherme Mendonça, entre outros boquenses, que animarão a tarde com leituras fermentadas.


Feira do Livro

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Quem quiser aproveitar a Feira do Livro de Lisboa (24 de Maio a 10 de Junho, Parque Eduardo VII) para comprar com 20% de desconto a A Alegria de Gostar, de Jairo Aníbal Niño, a BOCA está representada na Tenda dos Pequenos Editores, no alto da Feira, onde a vista é mais bonita.


Trajes a rigor

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A BOCA alinda-se para as festas juninas com as capas ilustradas por Guilherme Mendonça (Tabacaria), Miguel Rocha (O Tesouro) e Susana Marques (A Carta da Corcunda para o Serralheiro, título lançado este mês):






A Boca apresenta-se

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CONVITE

A Boca – palavras que alimentam, Lda. tem o prazer de convidar todos os interessados a divulgar e assistir às apresentações do seu primeiro título, A Alegria de Gostar, do colombiano Jairo Aníbal Niño:


- 2 de Abril, na FNAC do Colombo (Lisboa), às 18h30,
com a participação especial de Rui Zink;

- 9 de Abril, na FNAC do Chiado (Lisboa), às 18h30,
com a participação especial de Inês de Barros Baptista
(Directora da Revista Pais & Filhos);

- 15 de Abril, na Maria Vai com Outras (Porto), às 17h30.


A Boca vai lá estar com A Alegria de Gostar

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Nos dias 31 de Março e 2 de Abril vamos à Feira do Príncipe Real.




Terça-feira, dia 6 de Março, no Bar do Cinearte A Barraca, em Santos, a partir das 23h, Changuito lerá, ao vivo e a cores, os poemas de amor que traduziu e a que deu voz no primeiro audiolivro da Boca: A Alegria de Gostar, de Jairo Aníbal Niño.

O audiolivro (em formato CD) estará à venda com 20% de desconto.



Pessoas à janela

No embalo de Tabacaria, poema maior de Álvaro de Campos, a Boca regressa a Fernando Pessoa pela voz de Maria do Céu Guerra, desta vez com A Carta da Corcunda ao Serralheiro, único texto conhecido do seu heterónimo feminino: Maria José.
Dois monólogos à janela de dois quartos de ver o mundo: o do génio só para si – paralítico da alma – e o da boneca com os ossos às avessas – paralítica do corpo –. Mas quando poeta e actriz em tantos de transfiguram, o resultado só poderia ser diverso: no estilo da escrita e na flexibilidade da interpretação.
Pouco conhecida dos leitores, Maria José encarna a expressão máxima da despersonalização literária do poeta, da heteronomia pessoana; mas a carta de amor composta pela corcunda parece também, como defende Teresa Rita Lopes em Pessoa por Conhecer, “o auto-retrato mais acabado” de Pessoa enquanto “’grande alma’” que se sentia “’ninguém’”.


Excerto de A Carta da Corcunda para o Serralheiro

(...)
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser.
(...)
- e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus na rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vê, valha-me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou a chorar.

Maria José

[s/d]

Em breve disponível em www.boca.pt em formato Mp3.


Fernando Pessoa por Maria do Céu Guerra

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TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos (heterónimo de Pessoa)

Lisboa, 15 de Janeiro de 1928

Já disponível em formato mp3 para audição e compra (a crédito ou por tranferência bancária) em www.boca.pt


Pessoa por Pessoa - nota autobiográfica*

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Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.
Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Director-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus.
Estado: Solteiro.
Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.
Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dto. Lisboa. (Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa).
Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.
Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.
Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.
Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.
Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.
Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.

Lisboa, 30 de Março de 1935

* Parcialmente publicada como introdução ao poema «À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais», editado pela Editorial Império em 1940.


Um conto que é um tesouro

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Novo audiolivro da BOCA já disponível em mp3

O Tesouro

Mestre no romance, Eça de Queiroz condensa com elegância a sua escrita minudente para fabricar uma pequena história, aguçando o enredo, armando ao leitor emboscadas, deixando-o em poucas páginas suspenso ou abismado.
A voz inquietante de Fernando Alves e a atmosfera metálica criada por Amélia Muge e António J. Martins valorizam toda a tensão narrativa deste conto, em que três irmãos, “os fidalgos mais famintos e remendados de todo o Reino das Astúrias”, encontram, escondido num bosque, um tesouro que num só dia os leva a conhecer um destino assombroso.
O Tesouro foi primeiro publicado na Gazeta de Lisboa, em 1894, e depois reeditado, juntamente com outras narrativas breves de Eça de Queiroz, num volume dado à estampa em 1902 (Porto), sob o título Contos.

Eça de Queiroz

«Eça de Queiroz, minha senhora, é essencialmente, molecularmente - desde a medula dos ossos até os poros da pele -, o que se chama um artista.
(…) A sua natureza provém — por hereditariedades, por atavismos, por coesão magnética, por outras forças cósmicas por enquanto desconhecidas —, de várias naturezas diversas: anjo, mulher linda, mulher velha, sibarita, herói, libertino e santo.»

Ramalho Ortigão


Fernando Alves

A vocação impôs-se cedo. Aos 16 anos já Fernando Alves tinha encontrado a sua primeira oficina no Rádio Clube de Benguela.
A voz profunda, a dicção sensível, o entendimento poético do quotidiano noticioso aproximaram muitas vezes o jornalista da arte e os ouvintes da comoção, em programas que fizeram história e escola na rádio portuguesa. São exemplo “Búzio Ardente” na RDP, ou “Os Dias Andados”, “O Postigo na Noite”, “A Espuma dos Dias” e “Avenida de Ceuta N.º 1” na TSF – Rádio Jornal, estação que ajudou a fundar. Ali coordena o magazine de informação A Semana Passada e regista, desde há 12 anos, os “Sinais”, crónica diária antologiada pela Oficina do Livro em 2000. Em 1994 foi distinguido pela Casa da Imprensa com o Prémio Bordallo da Rádio.


Ficha técnica:

Voz: Fernando Alves
Concepção de base sonora: Amélia Muge
Pesquisa sonora, execução e gravação: António J. Martins


Disponível no nosso site em www.boca.pt

O Tesouro de Eça de Queiroz
Preço 4,90 € (download)


Poemas de amor para crianças de todas as idades

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Se um amigo lhe oferecer 54 poemas de amor em audiolivro de grande calibre; e se esses poemas, ditos por Changuito e musicados por Amélia Muge e António J. Martins, lhe provocarem uma ventaniazinha por dentro, exactamente no estômago do coração, isso é porque está a ouvir A Alegria de Gostar, de Jairo Aníbal Niño.


Por via das dúvidas, damos-lhe 10 exemplos:

1.
Quando cheguei da escola


Quando cheguei da escola,
tirei os sapatos,
deixei no chão a mochila onde trago livros e utilidades,
sentei-me no velho sofá de que gosto tanto,
chamei o meu gato para lhe dar mimo,
não quis almoçar nem falar com ninguém,
e fiquei a olhar para o retrato do Zico
que tenho colado à parede.
Do lado de fora da janela
passou uma cor tão rápida
que só consegui ver um nadinha de pássaro ou borboleta.
Saquei do bolso da camisa uma folha de caderno
onde ela tinha escrito o seu nome.
É trigueira, de tranças, chama-se Alejandra, ri-se lindamente,
e tem nove anos como eu.
Estuda no terceiro A,
e ao lembrar-me dela
senti uma ventaniazinha por dentro
como se me tivesse começado a doer
o estômago do coração.


2.
Fazes-me um favor


- Fazes-me um favor?
- Que tipo de favor?
- Guardas os meus aviõezinhos durante todo o recreio?
- Durante todo o recreio?
- Sim, que tu és o meu céu.


6.
Liliana


- Liliana, contaram-me
que preferes sair com o López
porque ele é um miúdo muito rico,
proprietário de muitas coisas.
Para que saibas,
Eu também sou muito rico;
Tão rico, que uma vez fui dono
De quinze cavalos de corridas.

- Mateo, olhando para ti, é incrível pensar
que alguma vez foste dono
de quinze cavalos.
Diz-me… eles correram
No hipódromo da capital?

- Não, Liliana.
Eles nunca correram no hipódromo.
Faziam-no perto da Ilha Grande,
No golfo de Morrosquillo.
Os meus quinze cavalos eram de mar.


10.
Depois da nossa visita


Depois da nossa visita ao jardim botânico
A professora deu-nos como tarefa
Falar sobre a arvorezinha mais bonita que tínhamos visto.
Um disse que era o cajueiro (Anacardium occidentale L.)
Outro afirmou que o nacedero (Ruellia gigantea).
Uma colega disse que era o sabugueiro (Sambucus nigra L.)
Outra sustentou que a aralia (Aralia capitata Mosq.)
Outro inclinou-se para a estrela de Caquetá (E. amazónica Linden)
E houve quem dissesse que era a lila (Barleria strigosa Willd).
Quando me perguntou eu não disse nada
E não porque não soubesse,
Já que estava completamente certo de que a mais linda,
Era a sedosa, brilhante e perfumada arvorezinha de cabelo
Da minha professora (Amalia Andrea Mateus L.)


36.
Quando me olho ao espelho


Quando me olho ao espelho
vejo a imagem de uma menina
alta e magra,
com ar de pássaro
que se alimenta unicamente
com as frutas da chuva.
Sou tão jovem
que penso que o meu coração
é uma boneca de trapos
que tem por coração
uma menina alta e magra
com ar de pássaro
que se alimenta unicamente
com as frutas da chuva.
Mas às vezes,
sinto-me muito antiga,
como naquele dia
em que o professor de história sagrada
nos falou do paraíso terrestre
e contemplei a tua cara sardenta
com uma melena na testa
e quando voltaste a cabeça
e me sorriste
a minha pele se pôs cor de maçã.


44.
Chegou à aula num 15 de Maio


Chegou à aula num 15 de Maio
- dia de chuva -
chegou e olhou-nos a todos docemente.
Sou a nova professora de filosofia, disse-nos.
Sorriu
e foi como se as gotas de chuva
que sobreviviam sobre o seu impermeável amarelo
se tivessem convertido em pensamentos.
A todos nos pareceu que era muito jovem para ser professora
- e demasiado, para ser professora de filosofia -
Comecei a pensar nela todas as tardes
no momento exacto em que na rádio
acabava um programa de desporto
e começava outro de canções.
Surpreendentemente ela esteve presente
na final do intercolegial de futebol.
Nessa ocasião estive inspirado no meio-campo
E fiz um dos golos que nos deram o triunfo.
Ela entregou-nos a taça de campeões.
Jamais esquecerei a minha professora de filosofia.
No dia do exame final,
ao apresentar-lhe o meu trabalho,
disse-me que me parecia com Sócrates.
Enchi-me de orgulho
e creio que os meus olhos se encheram de lágrimas.
Caminhei até à minha mesa
Como se fosse pelo ar, como uma pombinha.
Era o melhor elogio que tinha recebido na minha vida.
Eu, parecido com o Sócrates,
o grande jogador de futebol do Corinthians,
Sócrates B. S. de Souza Vieira de Oliveira,
O inesquecível centro-campista da selecção do Brasil.


47.
Ofereço-te esta gatinha


- Ofereço-te esta gatinha.
- Obrigado, mas não gosto de gatos, prefiro os peixes.
Sabes que há uns que se chamam telescópios.
- Esta é uma gatinha mágica.
- Mágica?
- Sim. Quando o tempo passar, e ela morrer, poderás fazer com a sua pele uma bola de futebol que terá a virtude de obedecer ao pensamento. Basta desejares e poderás meter todos os golos que quiseres.
- Não sei que pensar.
- O futebol é o que gostas mais na vida.
- Sim, mas… quem é que já viu uma bola de futebol feita de pele de gato?
- Michel Platini.
- Tens a certeza?
- Disse-mo o meu tio Esteban, que toca violino na filarmónica.
- Ouvi dizer que as cordas dos violinos são feitas com tripas de gato.
- E também com a pele de alguns se fazem bolas de futebol mágicas.
- Está bem, aceito-a.
- Ofereço-ta, mas com uma condição.
- Qual?
- Que não me esqueças nunca.
- Como é que te vou esquecer, se em cada golo me vou lembrar de ti?
- Está bem.
- E como se chama a gata?
- Margarida.
- Tem o mesmo nome que tu.
- Sim, e o apelido é Taça do Mundo.


51.
Ofereci-te um caracol


Ofereci-te um caracol no teu dia de anos.
Quando içaste a bandeira obsequiei-te outro cor de pérola.
Uma tarde, quando me dei conta de que estavas triste,
mandei-te pela minha irmã um caracol das ilhas.
Há uns dias, deixei-te um par de caracóis de rio,
dentro da tua carteira.
Ontem estive em tua casa e levei-te um caracol transparente,
tão belo e estranho
que parecia feito de ar endurecido.
Mesmo assim, a tua mãe enfureceu-se comigo
e gritou que jamais queria voltar a ver-nos
- nem a mim nem aos caracóis que te ofereço constantemente -
Ela não compreende
que eu
simplesmente,
estava a fazer uma escada de caracol
para chegar a ti.


52.
Se a Maria


- Se a Maria tem três maçãs
e dá uma ao Nicolás,
com quantas fica?

- Em que pensas, Nicolás?
Não sabes a resposta?

- Se a Maria me dá uma Maçã,
ainda me resta uma esperança.


54.
Não procures mais o teu caderno de geografia


Não procures mais o teu caderno de geografia.
Eu tirei-o da tua mochila.
Não quiseste ir à matiné comigo,
no domingo passado.
Os meus amigos contaram-me
que estavas acompanhada pelo Bermudez,
o grandalhão que pratica luta livre.
Contaram-me que estavas muito linda,
e que te rias a cada segundo.
Não procures mais o teu caderno de geografia
Agora que está a chover,
aproxima-te da janela,
e verás passar oitenta barquitos de papel
Não procures mais o teu caderno de geografia.


Ao lado das crianças, dos loucos e dos apaixonados

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Entrevista a Jairo Aníbal Niño

Jairo Aníbal Niño tem 65 anos e vive numa montanha perto de Bogotá, capital da Colômbia. Aluno e professor refractário, propõe uma revolução da escola que ofereça às crianças um Ensino Superior. Enquanto estudante pintou, fundou e dirigiu grupos de teatro e estreou-se na dramaturgia. Para além de teatro escreveu guiões de cinema, poesia e contos infantis e foi director da Biblioteca Nacional da Colômbia. Entre os galardões mais importantes que recebeu contam-se o Prémio Nacional de Literatura Infantil (ENKA) de 1977, o Prémio Iberoamericano Chamán (México) de 1990, o Cuchilo Canário de Narração (Espanha) e o Misael Valentino (Cuba), ambos em 1993.


Olá Jairo. Como está?
Muito bem, muito bem. Porque estou ao lado das crianças, dos loucos e dos apaixonados. E, portanto, estou sempre muito bem.

Queríamos que nos falasse de si e de A Alegria de Gostar.
Esse é um livro mágico. Penso que todos os livros chegam ao coração do escritor como se fossem um pássaro, como se fossem uma canção que desde há muito tempo surge no coração dos seres humanos, e que o escritor é alguém que está atento a essas vozes, mas não sei, creio que ninguém sabe como chega realmente um livro às mãos e ao coração de quem o escreve. Quando me reúno com as crianças, faço-o com frequência, elas perguntam sempre sobre essa magia da oficina do escritor. Eu digo-lhes que em certas ocasiões eu estou sentado em minha casa, ouço bater à porta e pergunto quem é. E há uma vozinha do outro lado da porta que me diz: “um conto”. E eu levanto-me, abro a porta e aí está o conto. E o conto olha-me nos olhos e diz-me: “amigo-irmão”. E eu digo “amigo-conto, passe”. E o conto passa e conta-me o conto e eu conto o conto aos meus amigos. Há uma magia, algo que vai para lá de qualquer cálculo. A literatura não é um cálculo, como o amor. Ninguém sabe como, nem porquê se enamora.

Tudo o que escreve – teatro, cinema, poesia, contos – aparece assim, magicamente?
Sim, claro. Não creio na divisão dos géneros literários. Penso que o grande género da palavra é a poesia. O romance é um poema que pode ter 400 páginas.

A Alegria de Gostar, ao contrário de outros livros seus, mais metafóricos, trata de uma magia quotidiana, situada na infância. O que é que foi buscar à sua infância?
Alguém disse que a pátria de um homem é a sua infância. E sim, eu tive uma infância mágica, fui uma criança amada, tive uns pais loucos, que sempre estiveram ao lado do meu coração, com a liberdade que o amor sempre coloca nos bons pais. Mas o bonito é que o livro, que numa primeira instância parece que está dirigido às crianças, e está, é também apropriado, como sempre acontece com os bons livros, pelos jovens, os adultos e os velhos. O livro foi, em muitos países, uma parte do ritual de enamoramento. O enamoramento tem um ritual que é universal. A rosa, por exemplo, os chocolates em forma de coração e os poemas de amor.
Há uns tempos estive no México e chegou ao pé de mim uma rapariga que eu não conhecia e disse-me “Obrigada pela vida”. E eu disse-lhe “Que frase tão bela”. E ela respondeu-me “Não é uma frase. Obrigada pela vida”, e mostrou-me um carrinho de bebé, no qual estava uma menina de seis meses de idade, de olhos amendoados e flores no cabelo, como se tivesse sido pintada pelo Diego Rivera. E disse-me “Esta bebé é filha do teu livro La Alegria de Querer”. É assim o amor, é um mistério, é mágico, condensa toda a força do universo. Eu acredito que quando os antigos astrónomos, já os gregos, falavam do grande big bang de que falam os físicos agora, como uma explosão de amor, diziam que a matéria se condensou de tal maneira que chegou a ser como uma maçã, uma rosa, cheia de tanta força que só teve duas possibilidades: implodir e ficar condenada ao nada, ou explodir. E explodiu, graças ao amor; e dessa explosão de amor surgiram as constelações, os planetas, as luas e a vida no universo. Eu creio que há muitos planetas habitados por seres maravilhosos. E penso que o amor é a única coisa que salva o ser humano. Alguns seres humanos são cruéis porque perderam a magia do amor.

O Jairo nunca se zangou com o amor?
Jamais hipotequei o meu coração. Sempre estive longe do poder e perto da vida.

A pintura e o teatro continuam a fazer parte da sua vida?
Tal como não acredito na divisão dos géneros literários, também não acredito na divisão das artes. A música é poesia também, a pintura é poesia e é música e é cor. Penso que Pablo Picasso ou Leonardo Da Vinci são pintores que são poetas, que são cantores, que são filósofos, tudo está condensado. Precisamos muito das fronteiras, mas a mim sempre me inquietaram, sobretudo a divisão entre a razão e a emoção.

Mas tem trabalhado sobretudo a escrita.
Sim, penso que o teatro e a pintura foram uma espécie de preparação, de aprestamento para a palavra, e a palavra aprendeu desta experiência com as cores, com a música, com o palco. Quando no cenário aparecem a Julieta ou o Rei Lear de Shakespeare é absolutamente comovente, e não é um efeito exclusivo do palco, é um milagre da história, da memória, e é uma aparição plástica e poética e filosófica. Ali está condensada a história da espécie humana.

Queríamos que nos contasse a história condensada de Jairo Aníbal Niño, com as personagens mais importantes.
Eu nasci na Colômbia, mas sinto-me terrícola. A minha nave espacial chegou a este lugar e desde o ventre materno comecei a inventar contos. Eu lembro-me de como era a barriga da minha mãe, muitos seres humanos se lembram. E isso é uma sorte. Parece que quando um bebé nasce a etapa anterior de gestação e de crescimento no ventre materno é esquecida. Eu penso que é memória, também. E como são os seres humanos por dentro, isso é maravilhoso. As mamãs por dentro são como o cosmos harmonioso, e têm planetas, estrelas, cometas. E quando estamos dentro delas, apoiamo-nos nos pezinhos e olhamos para cima, para as maminhas da mãe e descobrimos a Via Láctea. Então, desde sempre, a minha relação com o mundo foi uma relação entranhável. Chega-me a alegria e a pena, as coisas que nos indignam e nos enchem de tristeza. Mas a tristeza deste mundo é tão verdadeira que finalmente se parece com a alegria.
Fui uma criança livre. Escapava-me do colégio para me aproximar dos aviões. Perto da minha povoação havia uma outra que tinha aeroporto, e todos os que voam seduziram-me desde sempre, e eu ia ao encontro dos aviadores que me levavam com eles. O comandante dizia que avisava o meu pai de que eu estava com ele, e voávamos para cidades como Barranquilla ou Caña ou outras, e eu regressava à tarde com o planeta terra nos olhos e com olhos de pássaro. Fui um estudante que teve muitas dificuldades, porque perguntava, porque punha em causa muitas coisas. Como quando chegou à sala da aula de física um bando de colibris, esses passarinhos preciosos, e o professor continuou a aula. E eu levantei-me indignado e disse: “Professor, a física está na janela. A física mais sábia e maravilhosa, porque as coisas que nos está a dizer devem simplesmente conduzir-nos à magia dos colibris.” Então às vezes havia dificuldades.
Na universidade também tive problemas. Por exemplo, se entrava na aula de sociologia e me encontrava com um professor que dizia “Não te vi nas minhas aulas hoje”. E eu respondia “Não estive nas tuas aulas porque estive na faculdade de medicina, onde se estava a falar de algo belo sobre a vida” ou “Eu hoje não vim à universidade porque me apaixonei, e não sou tão tonto ao ponto de vir à universidade quando hoje me apaixonei”. Então tive muitas dificuldades.
E as outras formas de expressão também têm que ver com a vida política e social do meu país. O teatro surgiu quando tivemos de levantar uma voz de indignação face à injustiça e a crueldade. Essa forma que a poesia adquiriu nesse momento era a adequada para passar uma visão do que a sociedade deve ser. E todas as coisas apareceram - o cinema, a pintura - como uma viagem. Eu também fui marinheiro, e um marinheiro quando chega a um porto inventa outra vez o mar e inventa outra vez a terra.

Também viajou por todo o país, antes da universidade.
Antes. Eu sou um crítico do sistema educativo, não só na Colômbia mas em todo o mundo, com excepções. O sistema é horrível, mas tenho de conceder-lhe momentos de lucidez, como o momento em que me expulsaram da escola. Eu era muito jovem, teria uns 15 anos, e foi maravilhoso, porque me dediquei a conhecer o meu país. Porque eu estava todos os anos na escola mas não conhecia o Amazonas, nem os nevados, as altas montanhas do sul do meu país, nem as planícies imensas do oriente da Colômbia e da Venezuela. Então percorri todo o país em autocarros, de bicicleta, a pé, a cavalo, e, claro, foi uma revelação como não tinha encontrado nos programas oficiais da escola. E todo o País se me revelou na sua riqueza, sobretudo humana: encontrei homens, mulheres, crianças, fantasmas, aparições, bruxos, astronautas, cantores, magos, tudo o que o forma, o calor e a cor do humano. E quando regressei à escola, com todo o conhecimento que tinha acumulado, fui ainda mais crítico e tive mais problemas ainda.

Experimentou
vários ofícios, nesta grande viagem.
Sim. Penso que seria muito belo se todos os jovens, em algum momento da sua vida, experimentassem diferentes ofícios, até encontrarem o melhor para o dom que têm – creio que todos os seres humanos nascem com um dom, e devem ser leais a esse dom. Mas entretanto é maravilhoso, por exemplo, aprender as artes da padaria, semear a terra, aproximar-se de uma oficina metalúrgica e estar ao lado dos operários e dos camponeses e todos os que, com o seu trabalho, constroem o mundo. E isso é poético e maravilhoso. Eu fiz muitas coisas que sempre se traduziram numa maior capacidade para a palavra.
Assim, recordo com carinho o meu tempo como ajudante de um camião, em que fazia viagens desde o Pacífico, em Boaventura, até Barranquilla, no Caribe, que são 160 mil quilómetros. E muitas outras coisas, às quais sempre acorri com a curiosidade própria das crianças. A mim interessa-me como se fazem as coisas. Então sempre estive perto das oficinas, das fábricas. As praças de mercado comovem-me. Alguém disse que o mais parecido com o Museu do Prado é uma praça de mercado e creio que tinha razão.

Como foi a sua experiência na universidade enquanto professor? Porque afinal passou para o outro lado.
Sim, e tive uma postura de amor aos meus estudantes, de atenção à insurgência do pensamento e longe de todo o autoritarismo. E percebi que um bom professor, o que faz é aprender com os seus miúdos. Eu nunca segui um programa porque nunca sabia o que se ia passar na minha aula. No dia em que a primeira mulher caminhou no espaço, foi precioso. A minha aula, programada de alguma maneira, teve como referência esse voo; em vez de ser às três da tarde, combinei com eles às nove da noite, fora da cidade, onde o céu era mais limpo. E todos olhámos para o céu e, realmente, sem telescópios nem aparatos, creio que vimos passar a nave espacial na qual viajava essa mulher maravilhosa e levantámos as mãos e saudámo-la e creio que ela nos viu, desde o espaço, e que na sua nave espacial também moveu as mãos, em sinal de adeus.

Como eram os testes e as notas?
Todos os meus alunos tinham a nota máxima. Porque a mereciam. Em alguns países mede-se o conhecimento com umas cifras matemáticas ou aritméticas. Sempre me pareceu uma estupidez. Na Colômbia as notas na universidade vão de 1 a 5. Assim, se tens um três, supõe-se que passas na matéria, e se tens um 2,99 já não. E tudo isto é uma agressão ao conhecimento, porque o conhecimento é pergunta. Nada é estável. Se os professores classificassem os cientistas do mundo, davam-lhes muito más notas, porque os cientistas do mundo todos os dias fracassam no laboratório. O caminho do conhecimento é o fracasso, não está traçado previamente. E aos miúdos em todo o mundo obrigam-nos a reproduzir informação e não a criar o conhecimento, desde pequeninos.
Eu proponho que os miúdos pequeninos vão à universidade, e não com o propósito de que se graduem aos 8 anos, mas para enriquecer a universidade, porque um menino de oito anos na faculdade de medicina rapidamente pergunta ao decano da universidade: “Olhe, doutor, para você o que é a vida? Caso seja necessário você tem a capacidade de me curar? Pode, por amabilidade, dizer-me porquê?” Ou na faculdade de arquitectura: “Doutor, porquê é que as escolas são tão feias, incluindo as bonitas?” Há edifícios escolares muito belos, mas em poucas ocasiões se viu uma escola em forma de golfinho, em forma de rosa, em forma de nave espacial ou em forma de cavalo. Porque é que o edifício de uma escola não tem a forma de um cavalo? Então há algo que não está a funcionar bem e os meninos poderiam trazer a sua sabedoria para que a arquitectura, a medicina, a física e a ciência se desenvolvam.
E também reclamo o direito dos meninos pequenos se aproximarem, entre outras coisas, da tecnologia mais avançada, dos grandes laboratórios, de conversarem com os professores mais importantes da universidade. Porque há uma concepção errónea, não sei se também ocorre em Portugal, mas aqui na Colômbia chama-se educação superior a que tem a ver com o ensino universitário. A educação superior é a que tem a ver com as crianças. Porque na universidade ninguém educa ninguém.

A literatura era o assunto principal das suas aulas?
Tínhamos muitos assuntos, como o amor, o futebol, a culinária, os sonhos. Não creio que uma aula de literatura se deva centrar em falar de técnicas, por exemplo, ou numa certa erudição. É um encontro com o mais vibrante do coração humano.

Não tratavam do trabalho da escrita?
Isso ensina a vida e o jogares-te na vida com a palavra. Nenhuma universidade do mundo ajuda ninguém a ser poeta, nem médico, nem astrónomo. Eu penso que o médico se forma com os seus pacientes e o astrónomo com as estrelas. A universidade não pode dar diploma de escritor. Ir à universidade é um direito e uma espécie de caldo de cultivo, de referência cultural e para aprender algumas coisas e esquecer outras, como dizia Oscar Wilde. As aulas têm uma importância relativa. A importância verdadeira surge quando o ser humano faz do seu ofício uma maneira de viver.

E como são hoje os dias de Jairo? Continua a dar aulas?
Não, por causa das viagens, mas os meus meninos continuam no meu coração. Tenho contacto com eles, recebo cartas, telefonemas, nos quais alguns me perguntam coisas sobre a palavra, a poesia, e eu remeto-os ao seu próprio coração. Sou livre, mantenho um culto à vida, num país que está submergido em coisas maravilhosas e em coisas terríveis, e a poesia, precisamente nesses espaços terríveis da injustiça e da morte, surge como uma necessidade para preservar esse caminho que a vida nos mostra.
Então sou um homem livre porque todos os dias eu amanheço de uma maneira diferente. Às vezes vejo-me ao espelho e digo: “Esta pessoa, parece-me que a conheço, que é boa pessoa”. Mas há dias em que amanheço aviador, há dias em que amanheço cavalo, há dias em que amanheço pássaro, há dias em que amanheço árvore, e o que para mim é muito importante é que sou sempre um homem livre, afastado do poder, o que é espantoso. Não acredito nos presidentes, nem nos ministros e menos nos banqueiros, e em tanta forma de poder que causou tanta dor.

Em sua casa contam-se muitas histórias?
Sim. Em relação aos meus livros, quando ponho a palavra fim (fim de episódio – não quero usar a palavra terminar, porque um livro não se termina), faço uma leitura com os meus filhos, a minha mulher e os meus cães. E desde que eles eram pequeninos, um deles ainda estava no berço, eu lia os livros, e ao que estava no berço pedia-lhe a opinião. E ele mexia as patinhas, sorria, e iluminava-se-lhe o umbigo, e dizia que sim, que aquele era um bom livro. E com a minha mulher também. E com os meus cães. Eu aproximava-me deles e dizia “Cães, vamos escutar um livro”, e os cães juntavam-se, olhavam-me nos olhos, lambiam-me as mãos, que é uma maneira de beijar que têm os cães, e diziam-me “É um livro muito belo, obrigado”.

E quais são os livros da sua vida
?
Creio que todos os livros são como uma família e que há relações de parentesco que, mais uma vez, ultrapassam as classificações. Há contos maravilhosos que estão nos nossos corações, que nós amamos. Obras como as de Stevenson, ou Shakespeare ou Homero. Quando nos aproximamos destas páginas é como se chegássemos à nossa própria casa.


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